quinta-feira, dezembro 22, 2005

A águia que (quase) virou galinha

Rubens Alves


“O tempo está chegando quando o homem não mais lançará a flecha de seu desejo para além de si mesmo e a corda de seu arco se esquecerá de como vibrar... O tempo está chegando, quando o homem não mais dará à luz de uma estrela. O tempo do mais desprezível dos homens...“
Nietzsche


“O tempo está chegando quando todas as águias se transformarão em galinhas.”


A idéia dessa estória não é minha. Meu é só o jeito de contar...
Sobre uma águia que foi criada num galinheiro.
E foi aprendendo sobre o jeito galináceo de ser, de pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros...
E na medida em que aprendia, ia esquecendo as poucas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim: todo aprendizado exige um esquecimento... E ela desaprendeu.
o cume das montanhas,
os vôos das nuvens,
o frio das alturas,
a vista se perdendo no horizonte,
o delicioso sentimento de dignidade e liberdade...
Como não havia ninguém que lhe falasse dessas coisas, e todas as galinhas cacarejassem os mesmos catecismos, ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação hormonal, tudo grande demais, aquele bico curvo, sinal certo de acromegalia, e desejava muito que seu cocô tivesse o mesmo cheiro certo do cocô das galinhas...
Um dia apareceu por lá um homem que vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.
“Que você faz aqui?”, ele perguntou.
“Este é o meu lugar”, ela respondeu. “Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam o chão, botam ovos e finalmente viram canja: nada se perde, utilidade total...”
“Mas você não é uma galinha”, ele disse. “E uma águia.”
“De jeito nenhum. Águia voa alto. Eu nem sequer voar sei. Para dizer a verdade, nem quero. Altura me dá vertigens. É mais seguro ir andando, passo a passo...”
E não houve argumento que mudasse a cabeça da águia esquecida. Até que o homem, não agüentando mais ver aquela coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou a águia à força, e a levou até o alto de uma montanha.
A pobre águia começou a cacarejar de terror, mais o homem não teve compaixão; jogou-a no vazio do abismo. Foi então que o pavor, misturado a memórias que ainda moravam em seu corpo, fez as asas baterem, a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranqüila dignidade, até se abrirem confiantes, reconhecendo aquele espaço imenso que lhe fora roubado.
E ela finalmente compreendeu que seu nome não era galinha, mas águia...


Vaildes Setorio da Costa

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